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sexta-feira, 3 de agosto de 2012


in Público, 1 de Agosto de 2012, mais uma crónica fantástica de

Santana Castilho *

O tirano


Para quem se tenha esquecido, recordo que o concurso nacional de professores já foi um processo administrativo estabilizado e que não provocava conflitos. Políticas incompetentes e recentes inovações sem sentido, de vários donos, encarregaram-se, porém, de recuperar desastres de tempos idos. Mas a taça leva-a Nuno Crato, o tirano. Tanta ignorância, técnica e política, tamanha crueldade moral exercida sobre os docentes, surpreendem os mais treinados. Ontem, terminou o prazo para os novos escravos concorrerem. Terão sido mais de 40 mil, que aguentaram horas e horas de atalaia a uma aplicação informática que lhes fazia continuadamente o que os professores, desunidos, já deviam ter feito ao tirano: um continuado manguito. Servidor em baixo no fim de cada tempo infindo a meter códigos de fazer inveja a Sísifo e babar Kafka, foi a regra. Aceder à coisa, depois de horas de martírio, foi uma lotaria. Até a lei o tirano mudou, depois do concurso começado. Abriu com uma e terminou com outra, sem que o arbítrio tenha provocado mais que incómodos suportados. O que se passa com uma classe inteira, que assim é espezinhada e não consegue pôr cobro a tamanha sucessão de nunca vistos, resta campo para investigação futura. 

Primeiro, sem que se conhecessem os créditos atribuídos às escolas, sem que as matrículas estivessem terminadas e as turmas constituídas, o tirano obrigou os directores das “unidades orgânicas” (escola é vocábulo em vias de proscrição) a determinarem e comunicarem o número de “horários zero” para 2012-2013, sob ameaça de procedimento disciplinar. Milhares e milhares de descartáveis docentes, com dezenas de anos de serviço público desalmadamente ignorado, fizeram fila para o concurso crematório da dignidade mínima. Kapos, de reacção capada pela servidão a que o poleiro obriga, e classe inteira vergada pelo medo e desorientada pela surpresa, obedeceram. Foi a uma sexta-feira, simbolicamente 13. Mas na semana seguinte, qual Nero arrependido, o tirano mandou recuperar o que antes havia incendiado, ordenando a indicação mínima possível de horários zero e permitindo tudo o que antes proibira. Dos números, disse que não estavam “consolidados” e guardou-os na mesma gaveta onde há muito arrumou o rigor de outrora.

A dança macabra foi temporariamente (sublinho temporariamente) adoçada com um empreendedorismo inventivo de recurso: “apoios” de todo o tipo, “coadjuvações” de várias estirpes, combate ao insucesso, patati-patatá, rebéu-béu, pisca-pisca, “cratês” onde havia “eduquês”. Não o tratem que ele vos tratará, orçamento de 2013 a obrigar, volta ao texto do Tribunal Constitucional a justificar, Portas a satisfazer. Ou julgam que o tirocínio na Comissão Permanente do Conselho Nacional da UDP não foi útil? Qualquer tirano sabe que, vendido o inferno ardente, o purgatório passa por paraíso. 

Por que invoco aqui Portas? Porque é dele esta recente frase assassina, que Crato subscreverá com entusiasmo: «Temos de saber e entender que, se o problema de Portugal é défice do Estado, não é justo pretender que o sector privado tenha a mesma responsabilidade de ajudar.» Professores e demais funcionários públicos têm que fazer engolir a ambos a hipocrisia do argumento. Porque o que se gasta com hospitais, escolas, tribunais e tudo o que é público serve a todos, independentemente do sector em que trabalham; porque os 8 mil milhões que se sublimaram sem rasto na canalhice do BPN foram pagos por todos, embora, esses sim, só dissessem respeito a privados, pouquíssimos privados.

Teremos para o ano professores imersos em trabalho, com uma dúzia de turmas a seu cargo, coexistindo com colegas com uma só turma e resto do horário preenchido por “apoios”. As interpretações locais, casuísticas, do que dizem as normas sem norma sobre o que é lectivo e não lectivo, ampliarão a confusão e a nova injustiça, que se soma a tantas outras acumuladas em passado recente. 

Nenhuma circunstância permite a um político maltratar pessoas. Mas Nuno Crato ofendeu a dignidade profissional de milhares de professores. Fez sofrer inutilmente as suas famílias. Ultrajou o trabalho dos que preparavam o ano-lectivo. Tratou grosseiramente o interesse da escola pública, dos pais e das crianças. As duas últimas semanas foram devastadoras e trouxeram-nos uma prática governativa mais perversa e iníqua que a pior do pior tempo de Maria de Lurdes Rodrigues. 

A seriedade intelectual de Nuno Crato em matéria de Educação implodiu definitivamente. Falo da seriedade transmitida nas intervenções públicas que precederam a corrida ao cargo e da seriedade apreendida por quem se deixou enganar pelo seu discurso farsola. Não falo de seriedade intelectual intrínseca, que, essa, nunca existiu. Demonstra-o a curta história do seu ministério.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)
 

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