quarta-feira, 23 de maio de 2012


Desabafo/Reflexão
Enquanto docente da disciplina de Educação Visual e Tecnológica (EVT), com formação Académica Superior na referida área e, a lecionar há já um bom par de anos, passei de um momento para o outro, a sentir alguma indecisão e até um certo mau estar, uma vez que me sinto incapacitada de fazer uma apreciação e uma tradução clara e lógica que assimile uma nova proposta no âmbito da educação e do ensino. Foi proposto que para a lecionação desta disciplina, não serão necessários dois professores, ou seja, um par pedagógico, mas, apenas um professor.

Se enquadrarmos temporalmente a educação e as disciplinas ditas artísticas, fico com a impressão de que toda a evolução relacional e pedagógica, da qual fazem parte estas disciplinas, não se podem dispensar em educação, da consolidação dos conhecimentos de diversas disciplinas, do saber e, do saber fazer do ser humano, enquanto racional e produtor ativo, está a diluir-se sem qualquer base educacional plausível e acima de tudo compreensível e fundamentada.

Afinal, o que é que se espera e pretende da humanidade? Que os nossos vindouros, filhos, netos…ou os nossos alunos não apresentem capacidade ou mobilidade física e destreza manual de modo a coordenarem o saber, com o saber fazer, e cito alguns exemplos: reciclar,   pregar, serrar, colar, cortar…entre outras atividades? Então vamos voltar a discriminar as crianças ditas “inteligentes” em relação às restantes, privando as primeiras, de adquirirem competências específicas desta área e direcionando-as para disciplinas ironicamente ditas “cognitivas”, chegando mesmo a poder ocasionar um sentimento de perda, de vazio e de uma necessidade insaciada de aprender. (Bell, 2004).

Após profunda ponderação e reflexão, tendo por base a minha experiência enquanto docente, cheguei à conclusão que a referida disciplina ( EVT),  é muito mais enriquecedora sendo lecionada por um par pedagógico, uma vez que a qualidade e diversidade de ensino  é beneficiada e estimulante.
Focando o programa curricular da disciplina, posso garantir, sem relutância, que ela representa um elo de consolidação de quase todas as disciplinas curriculares, ou seja:

– Língua Portuguesa – Para além da comunicação oral e escrita comum e específica (termos técnicos e nomes próprios), EVT coopera com grande ênfase com a comunicação visual, pois cada vez mais temos a imagem a comunicar por si só, quer na transmissão de conhecimentos, quer mesmo dentro de toda a engrenagem de marketing que envolve a nossa sociedade, cada vez mais consumista;

– História e Geografia de Portugal – Toda a tecnologia evoluiu desde o aparecimento da roda até às mais sofisticadas descobertas, a par com isto temos a descoberta do papel e toda a evolução de materiais de desgaste e instrumentos de trabalho ao longo do tempo e da história (Pinturas pré-históricas nas grutas; a evolução do design desde a primeira bicicleta até à mais recente e quais são as motivações para essas alterações, entre muitas outras);

– Inglês – Principalmente ao nível das novas tecnologias existem diversos, e cada vez mais, termos específicos em inglês, sendo pertinente e fundamentada a coordenação destas duas disciplinas;

– Matemática – Esta é a disciplina em que EVT surge como uma mais-valia para a consolidação de competências, pois ambas tratam de conteúdos tais como Medida / Quantidade / Espaço / Geometria, entre outros, sendo o conceito mais complexo e difícil de assimilar o da Abstração, mas que na prática, nas aulas de EVT pode ser equacionado e ultrapassado positivamente;

– Ciências da Natureza – O estudo científico do conteúdo Cor/Luz é tratado cientificamente e focado em EVT ao nível teórico e transposto para a prática, sendo a cor pigmento presenciado e experimentado pelos alunos no contexto de sala de aula; do mesmo modo aborda-se o estudo do corpo humano em ciências sobre os seus órgãos e funções, em EVT as proporções e equilíbrios (Simetria, Assimetria, entre outros) sendo uma complemento da outra;

A disciplina de EVT participa e coopera com todas as disciplinas, estando o conteúdo segurança e higiene sempre presente, quer na organização do material, quer na postura física a ter em diferentes atividades e quer mesmo ao nível de higiene e trabalho. Esta disciplina também é uma mais-valia ao nível da motricidade fina, pois facilmente conseguimos detetar alunos com dificuldades neste campo.

O espaço físico da sala de aula de EVT normalmente é diferente, assim como a disposição dos  lugares e a dinâmica da aula, sendo muitas vezes um espaço para libertação de tensões, de expressão de emoções ou sentimentos, deste modo, também mais facilmente os professores de EVT conseguem sinalizar crianças/alunos com problemas a outros níveis, tais como: emocionais, relacionais, cooperativos, familiares, socioeconómicos, entre outros.

Gostaria ainda de referir algumas questões, que designo “curtas e grossas”:

– Sendo só um professor a lecionar, o ensino da disciplina será essencialmente teórico, pois muito dificilmente conseguirá efetuar um ensino mais individualizado e personalizado, para poder ensinar técnicas específicas que poderão acarretar algum risco, mas que são importantes para o dia-a-dia enquanto ser ativo, como: (cortar, martelar, moldar, cozer, serrar, montar…)… ou subdividimos a turma e damos um só conteúdo programático por Período letivo?

– Sendo um só professor, os alunos com Necessidades Educativas Especiais ( NEE),que até ao momento frequentam as disciplinas ditas de expressão, deixam de ir a EVT e serão necessários mais professores do Ensino Especial? Ou damos aulas só para eles de modo a evitar riscos maiores de destruição de material e até danos físicos dos presentes?

– Como é que podemos continuar a motivar as nossas crianças, valorizando a sua autonomia, autoestima, autoconfiança e estimulando o seu empenho, mostrando sempre que possível o seu trabalho a toda a comunidade escolar e circundante?

– Como vamos querer designers, arquitectos, carpinteiros, electricistas, mecânicos, pintores e até mesmo cursos profissionais de vertente prática, se se pretende atrofiar a sua aprendizagem logo nos primeiros anos de aprendizagem?

– Parece-me que estamos a aferir crianças como armazéns de competências, mas será que estamos a dar hipóteses de elas aprenderem a interpretar problemas, a conseguirem esquematizar soluções e a concretizá-las (Método de Resolução de Problemas)? Ou será que só vão ter a capacidade de detetar o problema e pura e simplesmente destruí-lo e comprar outro?

– Nas épocas mais marcantes do ano letivo (Natal, Carnaval, Páscoa, Dia da Mãe…), se for um só professor a lecionar EVT, o que é que os alunos agora vão expor e/ou desfilar? Como não se pode individualizar tanto o ensino das técnicas, os trabalhos serão mais simples e menos rigorosos, reduzindo muito o grau de exigência já transposto para o currículo de EVT. Será isto que se pretende?
Outrora dizia-se que o que diferenciava o Homem do animal era a inteligência. Recentemente ouvi dizer que o que diferencia o homem do animal não é a inteligência, uma vez que mais ou menos os animais também a têm, mas sim, a capacidade do homem criar e o animal não (Bell, 2004). Estarão a querer limitar essa criatividade, criando obstáculos logo nos primeiros anos de aprendizagem que são os mais férteis em assimilação e maturação de conhecimentos básicos?

Toda esta problemática me deixa evidentes perturbações enquanto professora e essencialmente enquanto mãe e mulher que acredita no futuro. Será que estamos a assistir à asfixia lenta e dolorosa da arte em Portugal, assistindo à dilaceração da curiosidade do saber e à “amputação” do prazer de fazer?

2 comentários:

Cronos disse...

Excelente artigo!

Alice Almeida disse...

Obrigada!