sexta-feira, 12 de outubro de 2012






O MENINO QUE NÃO SABIA CHORAR


“Podemos dizer que todas as pessoas são tristes somente por sua frágil aparência? Que a infelicidade é o sentimento mais 
humano que podemos entender? Que todos sofrem de maneira igual ou que guardam este estado dentro de si por 
algum motivo? Eu posso responder um não para as três perguntas. 
Um menino, um menino especial.”

“Num lugar cinza de concreto e asfalto, onde a chuva constante era a única manifestação da natureza humana, vivia uma família de três integrantes: o pai, a mãe e o filho. Digo o pai, a mãe e o filho por não saber outros termos de uso, pois não sinto que era isto mesmo. Acho que nem laços consanguíneos possuíam. Mas para a memória da criança que ali vivia deixo a crença de família a ele, ao menos a crença.”

“Na casa desta família encontra-se o menino que citei antes. Ele era parecido com outros 

meninos de sua idade: baixo, franzino, meio encardido e com o nariz escorrendo. Nunca fui 

um boa detalhista como as outras pessoas. Nunca senti a necessidade de olhar para os 

outros. Todos eram meio embaçados por causa da chuva. 

“Mas voltando ao nosso menino que nem falar falava... Não falava porque falava. Ninguém 

sabia o porquê disto,mas não era algo comum entre os meninos de sua idade. Em casa, o 

pai e a mãe falavam. Falavam num tom baixo quase mudo, mas falavam. O menino não. O 

menino só olhava como se o seu olhar já dissesse tudo. E dizia mesmo.

 Mas para entender este olhar necessitava de algo que os outros não tinham acesso. Não sei 

o que era, talvez um livro, sei lá. Mas aquele menino dizia tantas coisas com aqueles 

olhinhos remelentos. Os seus olhos eram duas questões buscando respostas. E bota 

respostas a fornecer aqueles olhinhos. Por que a calçada era tão pequena e a rua era tão 

grande que havia mais pessoas do que carros? Porque se diziam as mesmas palavra quando 

se encontravam com pessoas diferentes? E por que raios chovia tanto naquele lugar? 

Perguntas e mais perguntas que eu não saberia responder agora.”

“O menino não era pobre, mas era privado de muitas coisas. Coisas que todos precisam ter 

naquela idade para quando se tornasse adulto conseguisse suportar bem a vida. Ele, um 

dia, andando pela rua achou uma bicicleta jogada atrás das latas de lixo. Sentiu algo por 

aquela bicicleta. Algo que nunca havia sentindo antes. Uma coisa que fazia a sua respiração 

diminuir e fazer doer a sua cabeça. Ele sentia pena da bicicleta. Pena por uma bicicleta? Sim 

ora essa.

 A bicicleta era muito diferente. Não possuía a corrente, o freio estava quebrado e o aro da 

roda da frente estava torta. Só que era uma bicicleta mesmo assim e o menino pegou-a 

para si. O menino arrastava aquela bicicleta pela rua todos os dias quando queria brincar. 

Todos olhavam aquele menino andando pela rua com uma bicicleta quebrada. 

O menino não se importava com isso. O que incomodava aquele menino era aquela chuva 

que caia constantemente deixando a bicicleta cada vez mais pesada. Se eu conhecesse 

aquele menino naquela época eu teria comprado uma bicicleta novinha para ele. Uma 

vermelha, com aro fino e com quatro machas. Que mesmo quando ele saísse na chuva 

a bicicleta estaria levezinha para andar. Bobagem minha, eu não faria isto. Eu somente 

olharia para aquele menino com o mesmo sentimento que tinha ele quando olhou para 

bicicleta pela primeira vez.”

“Outra coisa que o menino tinha, que para muitos era nada, mas para ele era tudo era uma 

coleção incompleta de soldadinhos verdes. E com estes soldadinhos o menino passava 

horas e horas somente fabulando histórias de tempos antigos onde a própria palavra dita 

era desnecessária. Suas histórias eram curtas, mas com muita profundidade e sentimento 

como numa epopeia. Reinava a paz e a tranquilidade para todos os habitantes nas suas 

histórias, mesmo faltando muitos personagens para as completar e ter um verdadeiro final 

feliz. Os outros não o entendia, pois ele não falava nenhuma palavra. Os monossílabos que 

saíam de sua boca juntos as gotas de chuva que caiam nas telhas das casas pareciam o 

encontro de várias notas musicais em plena orquestra sinfônica. Mas não eram. Eu sei que 

não eram...”

“Um dia, não sei ao certo o porque, o menino ganhou um presente de seus pais. Não por 

ser o seu aniversário ou por ser Natal, somente ganhou um presente. Ao receber o presente 

o menino, imparcialmente, abriu-o e descobriu o que lá tinha. Era um livro, um grande 

livro de capa vermelha. Dom Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes.

 Os olhos do menino do fosco ao brilhante em poucos segundos mudava. Logo o menino 

começou a ler aquele livro.

 Não que o menino soubesse ler, como muitos outros meninos de sua idade. Mas ao passar 

de páginas, letras capitulares douradas eram expostas junto com ilustrações belíssimas 

feitas a mão. No livro aparecia um homem magricela que sobre o seu cavalo seguia viagem 

pelo mundo a fora. E o menino pensou como engraçado era andar sobre um cavalo de 

lugar para lugar. E ainda mais como estranho era aquele mundo ao qual não chovia. Não 

chovia mesmo.

 Chovia não no livro e sim...deixa para lá a história já está quase no fim mesmo.”

“Um dia, como muita ousadia e timidez, o menino levou o livro para os pais. Seu gesto não 

fora tão bem entendido no começo pelos pais, mas compreenderam depois que era para o 

livro ser lido. O pai começou a ler aquele livro... 

Como difícil é falar sobre isto! Tem vezes que coisas na vida não deveriam acontecer. O 

limiar entre o certo e o errado é pouco visível e amadurecer de uma vez só é duro e 

perverso. Continuando...O pai começou a ler aquele livro dia após dia.

 O menino ouvia atenciosamente aquele livro dia após dia com olhos que já não dizia mais 

nada. Quando o pai terminou aquele livro, numa quinta-feira doze dias depois, o menino 

fechou os olhos de uma única vez e emitiu um som quase mudo, mas que dava para ser 

entendido: 'Quando morre alguém que amamos...' O pai não teve reação na hora. 

Creio que felicidade misturado com espanto pelo menino ter falado. O menino saiu dali e 

foi direto para rua.

 Na rua não chovia mais. Mas agora o menino entendia o sentido daquela chuva, pois 

aquela chuva não era tão estranha para ele. Não mais. Na verdade, aquela chuva até parecia 

um conforto para o menino. A chuva era doce e limpa. Algo necessário para aquele 

momento.”

“Só naquele momento que o menino soube o que era chuva... só naquele momento o 

menino deixou de ser menino para se tornar homem... só naquele momento que aquele 

menino ser transformou em mim. E aqui estou sobre o seu divã contanto sobre mim 

mesmo e minha infância e como agora é difícil para eu lidar com este mal-estar que é a 

sociedade. Eu sei o que o senhor vai dizer...que eu preciso por para fora estes 

sentimentos...mas eu não sei como...já não sei mais chorar.”

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