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sexta-feira, 23 de setembro de 2011


Memórias de uma aula no Liceu de Setúbal

Barreiro, 4 de Outubro de 1967(Quarta-feira)

Segundo dia de aulas. Continua o desassossego, com o pessoal a trocarbeijos, abraços e confidências, depois desta longa separação que foram3 meses e meio de férias. Estávamos todos fartos do verão, comsaudades uns dos outros. A sala é a mesma do ano passado, no 1º andare cheirava a nova, tudo encerado e polido, apesar do material já sermais do que velho. Somos o 7.º A e como não chumbou nem veio ninguémde novo, a pauta é exactamente igual à do ano passado. Eu sou o n.º34, e fico sentada na segunda fila, do lado da janela, cá atrás, que éo lugar dos mais altos.

Hoje tivemos, pela primeira vez, Organização Política e apareceu-nosum professor novo, acho que é a primeira vez que dá aulas em Setúbal,dizem que veio corrido de um liceu de Coimbra, por causa da política.Já ontem se falava à boca cheia dele, havia malta muito excitada econtente porque dizem que ele é um fadista afamado. Tenho realmenteuma vaga ideia de ouvir o meu tio Diamantino falar dele, mas já nãosei se foi por causa da cantoria se por causa da política. A Inêscontou que ouviu o pai comentar, em casa, que o homem é todorevolucionário, arranja sarilhos por todo o lado onde passa. Ela dizque ele já esteve preso por causa da política, é capaz de sercomunista. Diferente dos outros professores, é de certeza. Quandoentrou na sala, já tinha dado o segundo toque, estava quase no limiteda falta. Entrou por ali a dentro, todo despenteado, com uma gabardinena mão e enquanto a atirava para cima da secretária, perguntou-nos:

- Vocês são o 7.º A, não são? Desculpem o atraso mas enganei-me e fuiparar a outra sala. Não faz mal. Se vocês chegarem atrasados também
não vos vou chatear.

Tinha um ar simpático, ligeiro, um visual que não se enquadrava nadacom a imagem de todos os outros professores. Deu para perceber que asprimeiras palavras, aliadas à postura solta e descontraída, começavama cativar toda a gente. A Carolina virou-se para trás e disse-me quejá o tinha visto na televisão, a cantar Fado de Coimbra. Realmente orosto não me era estranho. É alto, feições correctas, embora os dentesnão sejam um modelo de perfeição e é bem parecido, digamos que umhomem interessante para se olhar. O Artur soprou-me que ele deve teruns 36 anos e acho que sim, nota-se que já é velho. Depois dasprimeiras palavras, sentou-se na secretária, abriu o livro de ponto,rabiscou o que tinha a escrever e ficou uns cinco minutos, emsilêncio, a olhar o pátio vazio, através das janelas da sala,impecavelmente limpas.

Enquanto ele estava nesta espécie de marasmo nós começámos a bichanaruns com os outros, cada um emitindo a sua opinião, fazendoconjecturas. Às tantas, o bichanar foi subindo de tom e já era umaalgazarra tão grande que parece tê-lo acordado. Outro qualquerprofessor já nos teria pregado um raspanete, coberto de ameaças, masele não disse nada, como se não tivesse ouvido ou, melhor, não seimportasse. Aliás, aposto que nem nos ouviu. O ar dele, enquantoesteve ausente, era tão distante que mais parecia ter-se,efectivamente, evadido da sala. Quando recomeçou a falar connosco, em
pé, em cima do estrado, já tinha ganho o primeiro round de simpatia.
Depois, veio o mais surpreendente:

- Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devodizer-vos que não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano
passado, não foi? Então sabem, de certeza, mais que eu.
Gargalhada geral.

- Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhasdisciplinas, aquelas em que me formei, são História e Filosofia, nãotenho culpa que me tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar umamatéria que não conheço, nem me interessa. Podia estudar para vir aquidesbobinar, tipo papagaio, mas não estou para isso. Não entro em
palhaçadas.
Voltámos a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas eleficou impávido e sereno. Continuava a mostrar um semblante discreto,calmo, simpático.

- Pois é, não vou sobrecarregar a minha massa cinzenta com coisasabsolutamente inúteis e falsas. Tudo isto é uma fantochada sem
interesse. Não vou perder um minuto do meu estudo com esta porcaria.
Começámos a olhar uns para outros, espantados; nunca na vida nos tinhapassado pela frente um professor com tamanha ousadia.

- Eu estudaria, isso sim, uma Organização Política que funcionasse,como noutros países acontece, não é esta fantochada que não passa depura teoria. Na prática não existe, é uma Constituição carregada defalsidade. Portugal vive numa democracia de fachada, este regime quenos governa é uma ditadura desumana e cruel.

Não se ouvia uma mosca na sala. Os rostos tinham deixado cair osorriso e estavam agora absolutamente atónitos, vidrados no rosto enas palavras daquele homem ímpar. O que ele nos estava a dizer é o queouvimos comentar, todos os dias, aos nossos pais, mas sempre com asdevidas recomendações para não o repetirmos na rua porque nunca sesabe quem ouve. A Pide persegue toda a gente como uma nuvem de fumobranco, que se sente mas não se apalpa.

- Repito: eu não percebo nada desta disciplina que vos venholeccionar, nem quero perceber. Estou-me nas tintas para esta porcaria.Mas, atenção, vocês é outra coisa. Vocês vão ter que estudar porque,no final do ano, vão ter que fazer exame para concluírem o vosso 7.ºano e poderem entrar na Faculdade. Isso, vocês tem que fazer. Estudar.Para serem homens e mulheres cultos para poderem combater, cada umonde estiver, esta ditadura infame que está a destruir a vossa pátriae a dos vossos filhos. Vocês são o amanhã e são vocês que têm quelutar por um novo país.

Não vão precisar de mim para estudar esta materiazinha de chacha,basta estudarem umas horas e empinam isto num instante. Isto não valenada. Eu venho dar aulas, preciso de vir, preciso de ganhar a vida,mas as minhas aulas vão ser aulas de cultura e política geral. Vãoficar a saber que há países onde existem regimes diferentes deste, quenos oprime, países onde há liberdade de pensamento e de expressão,educação para todos, cuidados de saúde que não são apenas para osprivilegiados, enfim, outras coisas que a seu tempo vos ensinarei.Percebem? Nós temos que aprender a não ser autómatos, a pensar pelanossa cabeça. O Salazar quer fazer de vocês, a juventude deste país,carneiros, mas eu não vou deixar que os meus alunos o sejam. Vouabrir-lhes a porta do conhecimento, da cultura e da verdade. Vouensinar-lhes que, além fronteiras, há outros mundos e outras hipótesesde vida, que não se configuram a esta ditadura de miséria social ecultural.

Outra coisa: vou ter que vos dar um ponto por período porque vocês têmque ter notas para ir a exame. O ponto que farei será com perguntas dovosso livro que terão que ter a paciência de estudar. A matéria é umafalsidade do princípio ao fim, mas não há volta a dar, para atingiremos vossos mais altos objectivos. Têm que estudar. Se quiserem copiar écom vocês, não vou andar, feita toupeira, a fiscalizá-los, se quiseremtrazer o livro e copiar, é uma decisão vossa, no entanto acho quedevem começar a endireitar este país no sentido da honestidade, simporque o nosso país é um país de bufos, de corruptos e de vigaristas.Não falo de vocês, jovens, falo dos homens da minha idade e maisvelhos, em qualquer quadrante da sociedade. Nós temos sempre quemostrar o que somos, temos que ser dignos connosco para sermos dignoscom os outros. Por isso, acho que não devem copiar. Há que criarprincípios de honestidade e isso começa em vocês, os futuros homens emulheres de Portugal. Não concordam?

Bem, por hoje é tudo, podem sair. Vemo-nos na próxima aula.

Espantoso. Quando ele terminou estava tudo lívido, sem palavras. Que
fenómeno é este que aterrou em Setúbal?
 Já me esquecia de escrever. Esta ave rara, o nosso professor de
Organização Política, chama-se Zeca Afonso.

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