quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Carta aberta, no início do novo ano
Armanda Zenhas | 2013-09-11


Olhei para o número de turmas que vou ter e assustei-me. São tantas, tantas... mais que nos primeiros anos da minha carreira. E não me posso queixar. Muitos colegas têm 11 turmas. As turmas rondam os 30 alunos. Como vai ser possível conhecer-vos?
Queridos alunos,
Estamos prestes a conhecer-nos. Mas quero já explicar-vos que receio não conseguir aprender os vossos nomes nem distinguir os vossos rostos como sempre fiz questão de conseguir (com dificuldade crescente nos últimos anos), como vocês sentem que tem que acontecer e como têm direito a que aconteça. Olhei para o número de turmas que vou ter e assustei-me. São tantas, tantas... mais que nos primeiros anos da minha carreira. E não me posso queixar. Muitos colegas têm 11 turmas. As turmas rondam os 30 alunos. Como vai ser possível conhecer-vos? E se já me preocupa como fixar as vossas caras e nomes, mais me preocupa como vos conhecer mesmo, a pessoa que cada um de vocês é, para poder trabalhar com cada um de modo que corresponda às vossas necessidades; e com cada turma como grupo único que é, de maneira que se adeque à sua realidade. Quero recusar-me a considerar-vos números. Prometo que vou tentar fazê-lo. De há anos a esta parte, em cada novo ano este desígnio tem sido mais difícil de alcançar (o número de turmas e de alunos não tem parado de crescer). Não vou desistir dele... mas não posso prometer mais nada.

Caros pais e mães,
Para além do que já confidenciei aos vossos filhos, com o contínuo aumento do número de turmas por professor, cresce também aquele trabalho invisível, que a tanta gente passa despercebido (de forma injusta), como se não existisse. Por exemplo, as reuniões tornam-se cada vez mais. O constante aumento do número de alunos de cada turma, acrescentado ao número de turmas, obriga ainda a um maior tempo de preparação de aulas, de elaboração de documentos, de trabalhos/testes para corrigir.

Ouço falar em rigor, em exigência, em resultados. Na realidade, vejo... latas de sardinhas: escolas/agrupamentos gigantescos; turmas enormes; superprofessores com centenas de alunos, com cargos de enorme responsabilidade (coordenação de departamentos, secretariado de - cada vez mais - exames, etc.) sem lhes serem dadas horas para os exercer. Sinto que as pessoas (alunos, professores, assistentes operacionais, outros - poucos - profissionais das escolas) são formigas no sistema, números nas estatísticas. Falam-nos em necessidade de garantir resultados (assim, apenas, se entende a qualidade) e de encontrar soluções para lá chegar. Às dificuldades apontadas por todos os que sentimos ser impossível trabalhar adequadamente quando nem se consegue conhecer os alunos, o sistema responde que há que assumir as responsabilidades profissionais e mostrar resultados. Quero continuar a sentir-me uma professora-pessoa (ou não serei professora) a trabalhar com estudantes-pessoas-indivíduos. Quero que os vossos filhos, únicos para vocês, sejam únicos para mim também. Não vou desistir deste desígnio... mas não posso prometer mais nada.

Caros colegas,
O desespero é de todos nós, mas sei que não é igual para todos. Alguns (muitos) de nós nem conseguimos trabalho. Outros conseguiram-no uma vez mais (ou pela primeira vez) longe de casa, com o salário a quase não cobrir as despesas de deslocação. Uns têm a sorte de trabalhar apenas numa escola. Outros saltitam de escola em escola do mesmo agrupamento (ou até de vários). Uns desesperam por não conseguir trabalho. Outros desesperam por não terem mãos a medir para desempenhar o seu trabalho com qualidade e, para além disso, conseguirem manter uma vida pessoal (serem pais, mães, filhos, amigos... pessoas).

Sei que, como eu, todos vocês resistirão para que a escola pública não veja a sua qualidade degradada. A formação global de seres humanos com conhecimentos e valores é um desígnio de que não podemos desistir e em torno do qual temos de nos unir.

Como vou assinar esta carta? Poderia assiná-la com o meu nome, Armanda. Mas se a assinar como "Um/a professor/a", essa opção não será desadequada. Tenho a certeza de que muitos e muitos professores a poderiam sentir como sua.

Nota-final: O enorme problema colocado na carta é apenas um dos gigantescos problemas com que a escola pública se depara (por exemplo, o "cheque ensino" aí está como mais uma ameaça), e que fazem perigar a sua sobrevivência e o seu desígnio de garantir uma educação universal e de qualidade, com igualdade de oportunidades de acesso e de sucesso para todos. A resistência referida é uma forma de exercer a cidadania em defesa da escola pública.

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